Cecília Mattos Advocacia

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Vínculos afetivos, empresas familiares e patrimônio

O afeto tem fundamentado o reconhecimento de inúmeras espécies de núcleos familiares, ampliando a previsão contida no artigo 226 da Constituição Federal de 1988, embora parte da doutrina ainda seja contrária.

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil é gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda
1 Constitucional nº 66, de 2010)
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.1

Ocorre que, caso os membros desses núcleos detiverem titularidade e/ou participação em organizações empresariais, poderá esta vir a absorver impactos decorrentes da extinção do referido núcleo apta a instaurar a instabilidade administrativa, financeira e patrimonial ao ponto de culminar em crises que podem vir a desaguar na alienação ou até mesmo decretação da falência da empresa familiar.

Gladston Mamede e Eduarda Costa Mamede, lecionam:

O fato de a empresa estar ancorada numa família precisa ser tratado e desenvolvido sempre na direção das vantagens, ou seja, sempre reconhecendo a possibilidade de haver problemas e, assim, evitando-os. No mínimo, é preciso perceber que a empresa uma riqueza da família, é um patrimônio produtivo que deve ser preservado ou – melhor ainda – deve ser otimizado para, assim, render frutos por longo período, beneficiando diversas gerações. Isso exige, antes de qualquer coisa, compreender que uma empresa não é um cabide de empregos: a riqueza que ela pode proporcionar vem dos lucros e não do fato de empregar a todos. Aliás a prática de pendurar familiares na empresa, salvo situações muito específicas, é um caminho que habitualmente leva a uma crise econômico-financeira e, enfim, ao seu fim, com prejuízo para o patrimônio familiar.2

Portanto, a fim de evitar desdobramentos que podem levar ao fim da organização empresarial, decorrentes tanto da extinção em específico de vínculos afetivos, quanto de origens diversas tais como da sucessão, alguns dos institutos jurídicos, dentre eles, os gravames decorrente das cláusulas de incomunicabilidade, impenhorabilidade, usufruto, retroversão, dentre outros como, contrato de convivência, pacto antinupcial, acordo de sócios e protocolo de família com base no planejamento sucessório e societário podem ser de grande valia na perpetuação do patrimônio no seio da família empresária.

Note-se que os institutos acima citados são apenas exemplificativos, eis que a implementação do planejamento sucessório, em regra, admite outras vias, tais como, fundos de investimentos, seguros de vida, sociedades offshore, fundações, plano de previdência, testamento, doações, holdings puras e mistas; dentre outros.

Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede, sobre alguns desses institutos, dispõe que:

O grande desfio, obviamente, é quando a distribuição testamentária de bens deixa dois ou mais herdeiros com participação na(s) sociedade(s) e, assim, em condições de engalfinhar-se numa disputa sobre quem comandará as atividades negociais. Isso para não falar num risco cogente de perda do controle societário: a divisão, entre dois ou mais herdeiros, da participação societária pode conduzir a uma fragmentação das quotas ou ações e, com ela, a perda do poder de controle que a família mantinha sobre o negócio.

A constituição da holding, em oposição viabiliza a antecipação de todo esse procedimento e pode, mesmo, evitar o estabelecimento de disputas, na medida em que

permite que o processo de sucessão à frente da(s) empresa(s) seja conduzido pelo próprio empresário ou empresária, na sua condição de chefe e orientador da família, além de responsável direto pela atividade negocial. Isso viabiliza que uma nova administração empresarial seja ensaiada e implementada, com a possibilidade, inclusive, de se perceber, em vida, que alguém de quem se esperava capacidade gerencial não a tem.

Com efeito, a existência de personalidade, perfis e vocações diversas recomenda avaliar previamente, de maneira mais refinada, as necessidades e as potencialidades de cada herdeiro, bem como a necessidade e potencialidades da própria empresa ou grupo empresarial. A existência e atuação da(s) empresa(s) repercutem em trabalhadores, fornecedores, consumidores e na comunidade em geral. Daí a importância de uma sucessão qualitativa, refletindo-se num desenho organográfico prévio e, a partir dele, numa atribuição de funções que não encontra alicerce nas regras sobre inventários, testamentos etc. Noutras palavras, por meio da holding faz-se necessário uma combinação do Direito Sucessório com o Direito Societário, oferecendo uma alternativa profícua para o planejamento futuro da família e da corporação empresarial.3

Destaca-se que, por meio da holding familiar, a integralização do capital pode se dar por meio dos bens de família, que passam para a propriedade da referida, a qual além de  promover a concentração, permite a proteção e gestão do patrimônio com o benefício de ordem fiscal pertinente.

Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede, sobre holding familiar discorre que:

Como visto nos capítulos inaugurais, não corresponde à holding um tipo específico de sociedade, nem uma natureza específica, observação essa que alcança as holdings familiares. Portando, a holding familiar é caracterizada essencialmente pela sua função, pelo seu objetivo, e não pela natureza jurídica ou pelo tipo societário. Pode ser uma sociedade contratual ou estatutária, pode ser uma sociedade simples ou empresária. Ademais, pode-se adotar todas as formas (ou tipos) de sociedade estudadas no Capítulo 1: sociedade simples, sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples, sociedade limitada, sociedade anônima ou sociedade em comandita por ações. Só não poderá ser uma sociedade cooperativa, já que esse tipo societário atende às características essenciais do movimento cooperativo mundial, não se compatibilizando com a ideia de uma holding familiar. Constitui uma decisão importante a eleição da natureza jurídica que se atribuirá à sociedade, bem como respectivo tipo societário. Importante por que à ampla gama de alternativas corresponde um leque diverso de possibilidades. O especialista (operador jurídico, contabilista, administrador de empresa) deverá focar-se nas características da(s) atividade(s) negocial(is) titularizada(s) e, até, nas características da própria família para, assim, identificar qual é o tipo societário que melhor se amoldará ao caso dado em concreto. Diversas questões devem ser pesadas. Um exemplo claro é a eventual existência de atos operacionais de qualquer natureza, determinando riscos de prejuízos. Se a sociedade só é titular de patrimônio, material e/ou imaterial (incluído títulos societários), não assumirá obrigações, e, assim, não será indispensável recorrer a um tipo societário que preveja limite de responsabilidade entre as obrigações da sociedade e o patrimônio dos sócios. Em oposição, se a sociedade for assumir obrigações, havendo risco de não as suportar, melhor será adotar um tipo societário em que os sócios não tenham responsabilidade subsidiária pelas obrigações sociais, ou seja, a sociedade limitada ou a sociedade anônima. Para além dessas questões gerais, diversas questões acessórias devem ser consideradas pelo especialista entes de decidir entre uma natureza (simples ou empresária) e um tipo societário, designadamente as motivadoras, gerais e específicas, da constituição, conforme se apure junto aos sócios, bem como as metas que sejam pretendidas. Isso justificará um exame, ainda que resumido, de cada um dos tipos societários para destacar seus

méritos e deméritos, considerando a sua utilidade para os fins focados.4

Ressalta-se que a instituição da holding familiar é uma das possibilidades de planejamento sucessório por meio da qual as quotas ou ações, dependendo do tipo societário, podem, se doadas, vir a ser gravadas com cláusula de inalienabilidade, incomunicabilidade, impenhorabilidade, usufruto e/ou retroversão, artigo 547 do CC, abaixo transcrito, o que permite não só a institucionalização do controle e preservação como a individualização do patrimônio.

Art. 547. O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário.

Parágrafo único. Não prevalece cláusula de reversão em favor de terceiro.5

Ressalta-se que na reserva do usufruto para mais de uma pessoa, é comum estabelecer que o quinhão do falecido acresça ao sobrevivente, artigo 1.411 do CC, vejamos:

Art. 1.411. Constituído o usufruto em favor de duas ou mais pessoas, extinguir-se-á a parte em relação a cada uma das que falecerem, salvo se, por estipulação expressa, o quinhão desses couber ao sobrevivente.6

Ademais, necessário se faz que o instrumento de constituição do usufruto estabeleça de maneira pormenorizada todos os direito e deveres do nu-proprietário e do usufrutuário, inclusive quanto ao direito de retirada, por lacunosa a legislação aplicável ao tema, o qual pode, dentre outros, incidir sobre cotas de fundos de investimento, de sociedade limitada e ações de sociedade anônima, dentre outros direitos que admitem a transmissão.

Salienta-se que o núcleo familiar instituído, sob a união estável, pode vir a ser regulado de forma particular ou pública, por meio de acordo de convivência, no qual pode vir a ser estabelecida as obrigações das partes, o destino dos bens adquiridos, bem como com relação a titularidade de participação societária presente e futuras, seja de quotas e/ou de ações, bem como dos direitos patrimoniais decorrentes, em caso de extinção da convivência, dentre outras disposições.

No entanto, com relação ao pacto antenupcial, esse deve ser celebrado por escritura pública e sua eficácia depende da celebração do casamento, artigo 1.653 do Código Civil.

Art. 1.653. É nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento.7

Frisa-se que, por meio do pacto antenupcial, o vínculo afetivo instituído entre as partes pode vir a regulamentar, dentre outras possibilidades, o patrimônio empresarial pré-existente, presente e futuro, bem como seus frutos ou rendimentos; a administração da pessoa jurídica e dos demais bens de direito, inclusive, quanto a especificar a qualificação distintiva dos bens, se, empresariais, particulares ou familiares.

Ademais, não podemos olvidar da possibilidade de se regular diversas disposições com relação ao patrimônio empresarial e direitos derivados, por meio de acordos de quotistas/acionista e protocolos familiares, nos quais, necessário se faz constar que os herdeiros e/ou sucessores restam vinculados ao determinado e, que, podem tais acordos vir a ser complementados por meio de outros documentos, sujeitando não só os membros da família, mas todos os colaboradores, sem prejuízo da instituição de outras formas de governança coorporativa e de planejamento sucessório que, também, podem/devem ser adotadas em conjunto a fim de assegurar maior estabilidade às organizações em correspondência com a particularidade do caso em análise.

E, a fim de legitimar as disposições convencionadas por meio dos documentos próprios, tais como, o gravame atribuído às quotas/ações da organização, acordo de convivência, pacto antenupcial, pactos parassociais, protocolos familiares, dente outros, imprescindível se faz dar publicidade ao ato por meio do registro na forma prescrita em lei, seja, em Cartório Civil, Junta Comercial ou Livro de Registro de Ações Nominativas, dentre outros, o aplicável, a depender da espécie societária, seja ela simples ou empresarial, nos exatos termos da lei, a fim de afastar a nulidade do ato disposto.

Sobre esse aspecto leciona Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede, vejamos:

A distinção, contudo, preserva-se no Direito brasileiro. O artigo 982 do Código Civil estabelece que as sociedades podem ser: (1) empresárias ou (2) simples; as empresárias são aquelas que têm por objetivo o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro, conforme previsão anotada nos artigos 966 e 967 do
Código Civil; as demais são consideradas sociedades simples. Essa divisão, tendo por referência a estrutura – empresarial ou não – da atividade, encontra uma exceção no parágrafo único daquele artigo 982, tomada pelo tipo societário: as sociedades por ações são consideradas empresárias; a sociedade cooperativa é considerada simples. Em ambos os casos, a força excepcionadora de tal norma torna indiferente a estrutura existente em concreto. Uma sociedade cooperativa pode tocar um negócio sob a forma empresarial e, ainda assim, será considerada uma sociedade simples. Em oposição, a uma sociedade anônima pode corresponder uma atividade negocial que todos definiriam como sendo uma sociedade organizada; ainda assim, será considerada uma empresa.

As sociedades empresárias devem registrar seus atos constitutivos (contrato social ou estatuto social) na Junta Comercial. Segundo o Código Civil, tais sociedades podem adotar um dos seguintes tipos societários: (1) sociedade em nome coletivo; (2) sociedade em comandita simples; (3) sociedade limitada; (4) sociedade anônima; e (5) sociedade em comandita por ações. Em oposição, as sociedades simples registram-se nos Cartórios de Registro de Pessoas Jurídicas, à exceção da sociedade cooperativa que, em face da Lei 5.764/71, deve ser registrada na Junta Comercial. As sociedades simples podem adotar os seguintes tipos societários: (1) sociedade simples (em sentido estrito ou comum); (2) sociedade em nome coletivo; (3) sociedade em comandita simples; (4) sociedade limitada e (5) sociedade cooperativa.8

Recomenda-se ainda que os acordos parassociais com cláusulas típicas e/ou atípicas, incluído os protocolos familiares, os quais podem ser estendidos a não sócios, mas integrantes da família, sejam firmados por prazo determinado e longo, devendo ainda ser levados ao conhecimento de terceiros por meio do registro na sede, livros próprios, órgãos e/ou certificados das ações, a fim de garantir segurança jurídica.

Mister se faz ainda consignar cláusula de solução de conflito por meio alternativo, dentre eles, a conciliação, mediação ou arbitragem, eis que a via judicial em decorrência das inúmeras demandas que a abarrotam, muitas vezes, se mostra prejudicial à organização dada a morosidade na solução do litígio.

Oportuno destacar que, na hipótese do objeto das doações estar vinculado à legítima, a imposição de gravame exige justificativa, artigo 1.848 do CC, dentre outras limitações, a saber:

Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.
§ 1 o Não é permitido ao testador estabelecer a conversão dos bens da legítima em outros de espécie diversa.9

Em face de todo exposto, é fato que a morte é um evento da vida, assim como a união e extinção dos vínculos afetivos igualmente o são.

Entretanto, a fim de minimizar as controvérsias geradas em decorrências dos eventos acima citados, buscando afastar da apreciação do judiciário controvérsias oriundas de seus desdobramentos, as quais podem culminar em um processo longo, desgastante e extremamente oneroso, em específico quando envolvem empresas familiares, os instrumentos jurídicos disponíveis para tanto aptos a implementar o planejamento sucessório se mostram de grande valia para aqueles que decidirem por realizar o planejamento da sucessão patrimonial e preservação da organização de modo mais eficiente, sob todos os aspectos, a fim de minimizar os reflexos deletérios decorrentes.

Por fim, ensina, Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede que:

Essencialmente, no exato momento da morte, todos os bens são transferidos para os herdeiros (princípio da saisine, inscrito no artigo 1.748 do Código Civil). Essa transferência habitualmente se faz sem qualquer planejamento, do que pode resultar uma desordem e em disputas, com reflexos terríveis sobre a (s) empresa (s). Há incontáveis casos de empresas familiares que saíram mais fracas desse processo, outras não sobreviveram, indo à falência ou simplesmente tornando-se inviáveis ao ponto de terem suas atividades encerradas pela geração seguinte.10

Sendo assim, diante do cenário apresentado, oportuno se faz lançar mão das alternativas de planejamento sucessório e proteção patrimonial não só com relação às empresas familiares como para todas as relações humanas que envolvem patrimônio dada a finitude a que todos nós estamos fadados e as controvérsias e obstáculos decorrentes de tal sucessão.

 

Maria Cecília Fernandes de Mattos Crispim
OAB/RJ 199.992

 


 

1BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

2MAMEDE, Gladston e MAMEDE, Eduarda Cotta. Empresas Familiares: o papel do advogado na administração, sucessão e prevenção de conflitos entre sócios. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 4.

3Idem. p. 140, 141.

4MAMEDE, Gladston e MAMEDE, Eduarda Cotta. Holding familiar e suas vantagens: planejamento jurídico e econômico do patrimônio e da sucessão familiar. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2018. p. 109, 110.

5BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil.

6Idem.

7Idem.

8Idem. p. 19, 20.

9BRASIL. Op. Cit.

10MAMEDE, Gladston e MAMEDE, Eduarda Cotta. Op. Cit. p. 138.

 


 

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil.

MAMEDE, Gladston e MAMEDE, Eduarda Cotta. Empresas Familiares: o papel do advogado na administração, sucessão e prevenção de conflitos entre sócios. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.

MAMEDE, Gladston e MAMEDE, Eduarda Cotta. Holding familiar e suas vantagens: planejamento jurídico e econômico do patrimônio e da sucessão familiar. 10ª ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2018.

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